O valor humano

Estou sequestrada em casa, com os meus filhos, naquilo que em outros anos foram consideradas as férias da Pascoa.

Neste nosso lugar de habitação citadino temos uma proliferação de equipamentos informáticos que permite a todos estarem simultaneamente online. Eu tenho a sorte adicional de a minha clausura ser partilhada com dois adolescentes. Estão naquela idade em que se sentem perfeitamente felizes se eu os ignorar.

No meio de toda a incerteza que existe do que o futuro trará, no espaço de suspensão da realidade habitual que o confinamento forçado criou, noto que emergem, em mim e nas pessoas com quem interajo remotamente, sombras de medos geralmente submersos.

Para mim, reparei, não é o medo da morte nem da doença que me atormentam. Sempre gostei de distância nas filas do supermercado e estar em casa com um computador ou um bom livro dificilmente são momento desagradáveis. Acho idiota a proibição da praia e do campo mas, felizmente, o tempo lá fora ficou frio e desaconchegado. Assim, não são eles que me proibem, sou eu que não quero ir.

Este virus, do que a minha mente cientifica conseguiu aprender com os dados que existem disponíveis, é particularmente letal para velhinhos e pessoas doentes. Tenho algumas, poucas, pessoas realmente em perigo. Pergunto-lhes pelo telefone o que estão a fazer. Parecem estar a levar a ameaça a sério. Como se sentem? Bem.

Dos meus, os que estão sozinhos apreciam realmente a solitude. Os outros estão como eu, sequestrados com companhia agradável. Bom.

O fantasma que não me incomoda é o da sobrevivência ou da incerteza. O que me tem vindo visitar, e ficado a criar sombras na minha vivência diária, tem sido o fantasma da significância. Ou da sua ausência. O fantasma da relatividade do valor humano, se lhe podemos chamar isso.

Curiosamente esta crise despoletada pelo virus SARS-CoV2 tem iluminado uma dicotomia com a qual a maioria de nós não fez as pazes: a “economia” e a “vida”. As escolhas que tem sido feitas pelos governos e governadores são, em certa medida, a resposta que cada pais encontra para a pergunta: “Qual é o valor da vida humana?”. E, no extremo, a resposta à pergunta: “O que é mais importante, o valor da vida ou o valor do dinheiro?”

Tive o prazer inesperado de ler um livro há vários anos, não me lembro como me veio parar às mãos.

Escrito por David Graeber, um dos individuos por trás do movimento “Occupy Wall Street”, chamado “Debt: The first 5000 years”. Começa recontando como numa festa nos jardins da abadia de Westminster, uma conversa sobre o fundo monetário internacional e o cancelamento da dívida aos países do terceiro mundo, terminou com uma afirmação pela parte do seu interlocutor, como se fosse auto-evidente: “Mas eles (países) pediram o dinheiro emprestado! Certamente, é preciso pagar as dívidas.”

Mesmo de acordo com a teoria económica atual, quem empresta dinheiro está disposto a aceitar, com um certo nível de risco, que o empréstimo não seja pago.

Se um banco tivesse assegurado o pagamento dos seus empréstimos, pela venda de orgãos, ou pela venda dos filhos do devedor para escravatura, que razão teria para esperar por um plano de negócios sensato? Que impedimento teria para emprestar dinheiro por mais idiota e inconsequente que fosse a justificação para esse empréstimo? Qualquer empréstimo seria sempre recuperável.

Os bancos esperam por propostas sensatas, desejam receber planos de negócio sensatos, escrutinam com atenção a vida dos eventuais devedores, porque há o risco real do empréstimo poder ser irrecuperável.

A frase “Certamente, é preciso pagar as dívidas” é poderosa, não porque é verdade, mas porque por trás dela estão uma série de implicações de natureza moral.

Aceitar as nossas responsabilidades. Cumprir o nosso dever para com os outros. Esperar que os outros cumpram as suas promessas para connosco como é esperado que cumpramos as nossas promessas para com eles. É essa a essência de muitas das histórias “morais”.

O que pode haver de moralmente mais reprovável do que fugir das responsabilidades? De não cumprir as promessas? E, em extremo, de recusar pagar as suas dívidas?

Quando a rede de obrigações implicitas que unem um ser humano ao outro, nascida de uma troca de bens ou serviços, se processa num contexto de interações recorrentes, como acontece entre vizinhos ou familiares, o “devo-te” que surge nessa interação é mais uma qualidade da relação do que uma quantidade definida de algo concreto.

No entanto, a partir do momento em que um ser humano pode comprar outro ser humano, trocando uma quantidade definida de dinheiro por ele, como acontece no caso de escravatura, o valor da vida humana passa a poder ser rigorosamente quantificado.

Numa sociedade em que as horas de trabalho valem uma quantidade concreta de dinheiro, o valor de uma pessoa pode ser precisamente medido. Nesta sociedade um médico vale mais do que um enfermeiro, um enfermeiro mais do que um jardineiro, que valerá aproximadamente o mesmo que um pedreiro. Um médico famoso valerá mais que um recém-licenciado e um futebolista vale mais do que toda a gente, e constituí-se assim como o expoente máximo de valor societal.

Qual é o valor de um ser humano?

Se podemos saber qual é a quantidade de dinheiro que um ser humano “vale”, sabendo o valor monetários dos seus bens, e calculando o tempo de trabalho que pode fornecer e o valor/hora desse tempo, equacionar a “vida” dessa pessoa a “dinheiro” é uma questão de simples aritmética.

Um ser humano assim, pouco a pouco e imperceptívelmente, deixa de ser um individuo de valor inquantificavel e único, para passar a ser um objeto de valor precisamente quantificável. Em última análise o trabalho feito por um médico, ou enfermeiro, ou jardineiro ou pedreiro, é perfeitamente substituível pelo trabalho de outro.

Quando a sociedade, equaciona um ser humano a uma quantidade de dinheiro, deixa de haver pessoas insubstituíveis e existem apenas objetos numa enorme maquinaria que podem ser substituídos e são, intrinsecamente, substituíveis.

E qual é o valor de um ser humano? Qual é o meu valor? É uma pergunta que pode figurar no espaço mental como uma pergunta concreta que persegue e atormenta. Mais ainda em dias de incerteza e inatividade em que o valor de todos está, ou parece estar, em jogo.

Enquanto alguns países tiveram dificuldade em abdicar da “economia”, recusando-se a fechar os negócios para desacelerar a propagação do virús e potencialmente salvar algumas vidas, outros países, reflexo suponho das crenças dos seus líderes, e logo das suas, não tiveram como imediatamente aparente que uma vida, qualquer vida, poderia ser mais importante e valiosa do que o dinheiro que supostamente valeriam.

Os paises que pararam muita da sua atividade económica foram aqueles que tiveram dificuldade em quantificar o valor da vida dos seus cidadãos.

Uma história, simples, poderosa e cheia de significados:

“Com prendas fazemos escravos, com chicotes, cães.”

O “valor” intrínseco de um qualquer ser humano não é só, ou nem sequer primordialmente, determinado pela quantidade ou qualidade de trabalho que ele pode desempenhar. Nem pelo valor relativo desse trabalho na sociedade na qual ele vive.

Um ser humano, desde o momento da sua concepção, começa a criar ao seu redor uma rede complexa e interconectada de relações pessoais.

Um ser humano é filho de duas pessoas especificas. Daquelas duas, de nenhumas outras. É mãe, pai, irmão, tio, vizinho, marido de seres humanos especificos que tem com este ser humano, e não com outro, esta relação.

Um ser humano é um teia rica de dar e receber, de outros seres humanos, para outros seres humanos, e só muito marginalmente isso terá alguma vez a ver realmente, nos seres humanos saudáveis, com dinheiro.

Quando esta crise começou o que mais me espantou não foi o parar da vida normal, pelo contrário, foi antes o fernesim de atividade que subitamente explodiu à minha volta.

Vários negócios fecharam as portas, ou reduziram a acessibilidade das suas instalações a clientes e a empregados. Apenas para transferirem a sua atividade, com um enorme sentido de urgência, para o mundo virtual.

A escola inundou os seus alunos de aulas online, trabalhos de pesquisa na internet, videoconferências com os professores. Pior, muito pior nas escolas privadas do que nas públicas. Uma amiga iluminou-me a incompreensão: “Se os colégios pararem as aulas dos meus filhos terão de nos dar reembolso das propinas deste mês”.

Porque, mesmo nós andamos confundidos relativamente ao valor da nossa vida e estamos inconscientemente convencidos de que somos substituíveis. Porque não é só a ameaça da doença ou da morte que nos aterroriza. A ansiedade relativamente ao futuro tem muitas formas. O fantasma da significância, ou falta dela, afinal mora em todos nós.

Se está fechado em casa, e quiser aproveitar para parar e pensar mais profundamente no que significa ser um ser humano, e nas lições que o fantasma da significância tem para nós, recomendo realmente este livro.

David Graeber, “Debt: The first 5000 years”, (2011), Melville House Publishing, NY.

Publicado por Ofélia Carvalho

Trainer de PNL e Doutorada em Ciências Biomédicas. Investigadora na área das neurociências e biologia molecular com mais de 20 anos de experiência. Consultora do "Panorama Social". Formada em "Time Line therapy", "Human Validation Model" de Virginia Satir, Comunicação generativa e Coaching sistémico.

3 opiniões sobre “O valor humano

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