A perspectiva objetivamente subjetiva de uma neurocientista.
Por vezes tento ler artigos apenas para concluir que a minha atenção é retida por uma fração infima daquilo que encontro. Quando tento vislumbrar o que separa os artigos que me prendem a atenção, daqueles que começo a ler na diagonal, ou dos quais simplesmente desisto, noto que parcialmente tem a ver com o significado pessoal que atribuo ao assunto, parcialmente com o estatuto de “especialista” que atribuo ao autor, parcialmente com a qualidade da escrita, mas também muito com a impressão corporal que me provoca. A lã mental asfixia-me, os labirintos incompreensível perdem-me, e a inefabilidade éterea escapa-me. Outra coisa para a qual não tenho paciência, e a única que me consegue zangar, são as ditas “teorias” baseadas em “ciência”, a cuja “ciência” simplesmente não existe.

Eu tenho uma multitude de partes dentro de mim.
Duas delas em constante luta: a parte que quer partilhar as minhas experiências, e a parte que diz que isso é uma parvoíce.
“Quem és tu?”, diz ela.
Como tantos outros julgo que tenho coisas importantes a ensinar. No entanto, contra a parte de mim que quer partilhar as suas experiências, tenho também toda a minha formação cientifica. De excelência. Nos melhores institutos e universidades ocidentais. Com cientistas de gabarito internacional. Estive em alguns dos melhores institutos mundiais de investigação, conheci alguns investigadores que ganharam prémios Nobel, e fui treinada pelos seus alunos. Aprendi com eles. Cresci com eles.

E na ciência experimental, aquela de que fiz a minha vida nos últimos mais de 20 anos, a imparcialidade e a objetividade são consideradas essenciais. E a partilha de experiências é, de raíz, subjetiva.
Ou não?
Já tentei falar com os meus amigos, daqueles que fazem ciência a sério, sobre as experiências subjetivas. Abundam, quando se começa a tentar compreender o pensamento humano e o significado do que é ser humano. Que é a única coisa que a neurocientista dentro de mim considera interessante ou útil. Um deles disse-me que o que não pode ser medido não existe. O que é semelhante a afirmar que não existem sonhos ou intuições. Ou talvez ele quisesse dizer que estes não são um objeto de estudo científico. Não sei. O meu sentimento subjetivo foi o de bater de frente numa parede impenetrável feita de betão armado. Sei que o meu amigo, tal como eu, tem experiências subjetivas e que sabe que as tem.

Assumi que aquela parede inamovível na qual embati seria uma muralha de algum tipo, e desisti da conversa.
Desisti porque não me ocorreu, como não ocorre ainda, como “provar” que aquilo que eu “sei”, existe. Menos ainda me ocorre como provar que é real. Não consigo sequer começar a vislumbrar como “provar” – o que nas ciências experimentais é sinónimo de “quantificar” – que toda a agitação corporal, neuronal, hormonal, de um corpo vivo que sente, que acredita, que vivencia, é baseada em experiências verdadeiras e replicáveis. Talvez até replicáveis por outros seres humanos. E reconheço a realidade destas experiências. Mesmo quando reconheço que pode ser real apenas para mim.
A realidade é Sempre, subjetiva.
Subjetivo – (adjetivo) Que é individual; relativo ao sujeito; próprio de cada pessoa; particular: opinião subjetiva. Que se separa do considerado concreto; abstrato: pensamento subjetivo. Que se refere ao indivíduo ou dele faz parte: experiência subjetiva. [Filosofia] Particular ou relevante acerca de um indivíduo; pessoal.[Filosofia] Que é apropriado somente a um indivíduo e que só a ele interessa ou pertence. [Pejorativo] Que se pode referir ao próprio eu; relativo a vontades, a desejos, a comportamentos individuais; egocêntrico. [Gramática] Que, numa oração subjetiva, possui a função de sujeito ou a ele se refere. Etimologia (origem da palavra subjetivo). Do latim subjectivus.a.um. https://www.dicio.com.br/subjetivo/
A minha neurologia é um produto da minha genética e das minhas experiências pessoais. Do meu sistema nervoso, entérico e autonómico e simpático e parasimpático e central, hormonal e humoral. De toda a minha história pessoal. Daquilo que o meu sistema corporal vivenciou e experienciou e como foi modificado por essas experiências.

Influências ambientais condicionam a expressão génica o que por sua vez condiciona a resposta celular.
Dito em português: as minhas experiências influenciam o que os meus genes estão a fazer, e isso altera a forma de resposta das minhas células aos estímulos. E estamos só a falar de mim. O mesmo processo passa-se dentro de todas as células estudadas até ao momento. Podemos assumir com alguma certeza que se passa também dentro de ti, e de todos os teus amigos, colegas, conhecidos e de toda a outra humanidade. Todo o tempo.
A realidade, na realidade, é sempre subjetiva. Mesmo para os crentes das realidades objetivas. Nem esses se livram da subjetividade da sua realidade.

Apenas de livram da consciência dessa subjetividade.
Não sei se é útil.
As minhas experiencias, as que dão sentido à minha vida. Os meus sonhos. As minhas intuições e, até, as minhas conclusões, são frequentemente baseadas, e parcialmente suportadas, por alguns dados cientificos, mas, começando naquilo que ouço, o salto conceptual que faço para novas ideias, as conclusões que tiro, as ideias que me ocorrem, as suspeitas que em mim nascem, são minhas. A forma como interajo e interpreto com os dados cientificos com os quais entro em contacto já nasce de mim.
O sistema nervoso é feito de células, tudo em mim é feito de células. E logo tudo em mim é plástico, mutável, adaptável. Condicionado pelo meu meio ambiente. Aprendendo e mudando com a minha mera existência.
Tive sorte, tenho um irmão. É arquiteto.
Tem também a caracteristica de ouvir com atenção.

No outro dia enviou-me um link de um artigo.
Tinha-me ouvido a falar sobre mim, sobre as minhas coisas, e partilhou algo que ele achou que seria importante.
Neste artigo, que eu não conhecia, um grupo de investigadoras da Universidade de Stanford na California decidiu olhar para o padrão de ativações cerebrais provocadas por memórias sociais. E correlacionar a ativação cerebral (informação objetiva) com medidas de proximidade afectiva (informação subjetiva).
O desenho experimental é um desafio para mim, talvez porque tenho experiências pessoais diferentes das canónicas. Eu trabalho, no meu papel de coach e de formadora, com o Panorama Social, que lida exatamente com a codificação (subjetiva) pelo individuo do seu mapa social. E eu “sei”, de experiência nascida de vivência, que a codificação (subjetiva) de uma pessoa com a qual temos uma relação depende do contexto social relativamente ao qual estamos a pensar nela. A forma como cada um de nós codifica o seu marido depende do contexto ser o familiar, o contexto intimo, ou o contexto laboral. Seria problemático as representações serem idênticas em contextos diferentes, já que as representações mentais condicionam os sentimentos e os comportamentos.
Depois a experiência é feita utilizando “palavras” utilizadas como âncora “objetiva”. Imagine a codificação da palavra “cão” para alguém que tenha um medo paralisante de cães e para quem adore “cães”. Qualquer palavra tem este nível de subjetividade intrínseca, há pessoas para quem a “honestidade” é um valor fundamental, outras para as quais não será.

A grande farsa, ou talvez engano, da ciência experimental é assumir que aquilo que faz é – que pode ser, de algum modo – realmente objetivo.
Não pode.
Nunca.
O melhor a que a ciência pode aspirar, da forma como é feita atualmente embora com sinais de mudança, é a juntar um suficiente número de interpertações pessoais a, ao fazer a média, eliminar as particularidades individuais. É o método de obter uma ideia média, ou talvez mediana, da realidade. É o melhor nível de objetividade a que, enquanto seres humanos, podemos aspirar. E esta afirmação aqui afirmada não é uma invenção, até temos dados reais para o “provar”. Logicamente, é também a unica proposição possível.
O meu sistema nervoso que me transmite a informação sensorial à qual eu tenho acesso tem os meus genes. Aqueles que herdei dos meus antepassados através dos meus pais biológicos. Tem também toda a informação que recebi durante os meus anos formativos de todas as pessoas com as quais interagi, e certamente daquelas a quem chamei “pais”, mas também de outras a quem posso ter chamado “tia”, “avô”, “ama” e outras.
O meu sistema nervoso é meu. Os meus olhos estão ligados ao meu cérebro, que também está ligado às minhas mãos, aos meus intestinos e até aos meus pés. O meu sangue circula nas minhas veias. E o meu almoço fui eu que o comi. Os poetas, aquele tipo de pessoas que abraçam a subjetividade das suas experiências, escrevem algumas coisas interessantes e até, por vezes, certas. Este poema de António Gedeão é uma forma de dizer a verdade objetiva que subjetivamente eu tento partilhar agora aqui, acrescentando, porque é a minha forma de o fazer, alguma ideia de evidência cientifíca.
Os meus olhos são uns olhos. E é com esses olhos uns que eu vejo no mundo escolhos onde outros, com outros olhos, não vêem escolhos nenhuns. Quem diz escolhos diz flores. De tudo o mesmo se diz. Onde uns vêem luto e dores, uns outros descobrem cores do mais formoso matiz. Nas ruas ou nas estradas onde passa tanta gente, uns vêem pedras pisadas, mas outros gnomos e fadas num halo resplandescente. Inútil seguir vizinhos, que ser depois ou ser antes. Cada um é seus caminhos. Onde Sancho vê moinhos D. Quixote vê gigantes. Vê moinhos? São moinhos. Vê gigantes? São gigantes. "Impressão Digital" de António Gedeão
Curiosamente, essas investigadoras de Stanford chegaram a um aspecto da verdade para a qual agora começa a haver alguma evidência. É uma evidência circular, se pensarmos nisso. Mas também é uma evidência mensurável pois afecta o visivelmente o estado do meu cérebro.

Eu sei de quem gosto.
O meu sistema nervoso codifica essa informação algures.
Há ativação neuronal que está relacionada com o gosto que gosto de alguém.
Uma das coisas mais interessantes que este artigo veio mostrar é que a zona do cérebro que é ativada quando penso em mim (Medial Pre-Frontal Cortex) é próxima da zona que é ativada quando penso nas pessoas que me são mais próximas. Ou seja, há uma confusão entre o “eu” e o “tu”, quando me és próximo. Alguma vez te sentiste envergonhado por alguma coisa que a tua mãe tenha feito? Ou um dos teus filhos? Namorada? Estás a confundir onde é que tu acabas e o outro começa.

mPFC – Medial Pre-Frontal Cortex
OFC – Orbital Frontal Cortex
PCC – Posterior Cingulate Cortex
Tive um professor que, para evitar contrapontos teóricos ao que expunha cortava as minhas tentativas com um: “Não fui eu que disse isso, foi o (perito), tens de falar com ele”. Habitualmente quem ele dizia que tinha dito era o Robert Dilts. Eu criei uma imagem mental do Robert Dilts. Não era uma imagem muito abonatória. Um dia tive a sorte de falar sobre o Dilts com outra pessoa, e nesse momento comecei a reformular a minha imagem mental. Quando vi filmes gravados, de um seminário que o Robert Dilts deu em Paris, compreendi. “Não. Isso é o que Tu julgas que o Robert-Dilts-Que-Tens-Na-Tua-Cabeça, disse.” De facto, com alguma tristeza, aprendi uma coisa importante: Tudo o que temos para dar aos outros, somos nós próprios. E, de certa forma, enriquecemos sempre as pessoas que nos recebem – é essa a questão importante. Mesmo quando, objetivamente, não damos o que o outro pensou que estava a receber.

Tudo o que temos para dar aos outros somos nós próprios.
O primeiro passo.
Eu só posso falar de mim. Mas quando te dou a minha versão da realidade, quando partilho contigo as minhas conclusões, e quando dou o meu melhor para te ouvir, e o que tu tens para me dizer, estamos ambos a construir uma realidade nova.
Estamos ambos a receber uma ideia enriquecida daquilo que a realidade pode ser. Estamos o mais próximo possível que é possível estar a utilizar o sistema nervoso de outra pessoa para investigar a realidade. E mesmo quando encontramos professores cheios de limitações pessoais. E mesmo quando sabemos que seremos sempre professores, amigos, familiares, amantes, cheios de limitações pessoais. Sabemos que ao falarmos de nós próprios, com ou sem suporte cientifico, estamos sempre a partilhar tudo o que temos para partilhar. Porque as minhas limitações são minhas, e as tuas limitações são as tuas, e juntos somos uma coisa diferente, e mais completa, do que somos separados.
Artigo: J. Neurosci 2020; 10.1523/JNEUROSCI.2826-19.2020
um texto compreensivo de emoções que tive grande prazer em ler. Uma ou outra questão, nomeadamente a ciência experimental, tal como afirmado pela autora, levanta-me sérias questões pq a sociologia e as teorias behavioristas, que incluo naquela categoria, são validações preciosas.
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