Memórias

O que são?

Quando era miúda costumava passar parte das férias de verão com os meus avós. Aprendi a fazer tapetes de arraiolos, ponto de cruz, meio-ponto, tricot e malha com a minha avó. Não sou nem dotada nem prolífica nestas artes. Ocasionalmente fiz umas coisitas pequenas que maioritariamente ficaram por terminar. O meu avô, nos momentos que passamos juntos, mostrou-me uma incontável quantidade de coisas que ainda hoje adoro fazer. Usar o pão para rapar a frigideira onde foram fritos os bifes do almoço. Pôr um cheirinho de aguardente no Nescafé com açúcar. Mergulhar bocados de pão branco em toucinho cozido e fazer uma mini-sandes com a gordura antes de enfiar tudo na boca. Colocar castanhas num assador de barro sem lhes cortar a pele.

Na minha memória o assador de barro era mais ou menos assim. O meu avô usava algo para impedir as castanhas de sair, quando explodiam. Talvez um pedaço de cartão.

No entanto, apesar de eu estar convencida daquilo que escrevo, não posso provar se nada disto é verdade. Não tenho uma prova física e as testemunhas que existiam eram tão novas como eu, ou, agora, bastante mais velhas. Eu, tenho uma memória viva de tentar regatear com o meu avô a adição de várias castanhas por cortar ao assador. Os outros, que eu podia jurar que estariam presentes, não se lembram. Negociação essa que não culminou com uma explosão monumental de castanhas para minha desilusão na altura, posso acrescentar.

Todos temos memórias. Ou é isso que chamamos aos fragmentos de imagens, sons e emoções que julgamos terem acontecido em algum tempo do nosso passado.

Às vezes existem provas concretas, como fotografias, ou cartas.

Mas quantas vezes não existe nada e ainda assim temos a certeza absoluta que aconteceu?

O que são memórias? São fragmentos de imagens, toques, sons, emoções e cheiros que julgamos terem acontecido em algum momento do nosso passado. E no entanto esta descrição do que “são” memórias exclui dois aspectos fundamentais do que (também) são as memórias:

O primeiro aspecto, é que o nosso sentido de identidade está intimamente ligado às nossas memórias.

O segundo aspecto, relacionado com o primeiro, é que a falibilidade das nossas memórias pode, e condiciona, por vezes indevidamente, aquilo que pensamos que somos e o que pensamos que podemos fazer.

Memória e Identidade

Alessandro Portelli (1997) num ensaio sobre a função da memória oral na investigação histórica apresenta a memória como um “processo individual, que ocorre num meio social dinâmico, valendo-se de instrumentos socialmente criados e compartilhados.” , reconhecendo que as lembranças de um sujeito podem ser semelhantes ou contraditórias ao que é tido como “verdade” mas também que a função da memória é a de um “processo ativo de criação de significados”.

Pollak (1992), escrevendo sobre memória e identidade, refere que a memória pode ser constituída por elementos de vivência individual, e como um fenómeno construído coletivamente, sendo um dos elementos que constituem o sentimento de identidade. E aqui podemos entender, tanto de identidade individual como de identidade enquanto membro integrante de um grupo.

Ciência

Para mim, a aceitação de qualquer ideia pressupõe a existência de plausibilidade biológica. Se conseguir conceber um mecanismo biológico que possa sustentar a ideia, contemplo-a com atenção e de mente aberta. De outro modo vai para o balde mental do peixe estragado. É o meu viés pessoal.

A ciência que se vai fazendo diz-nos que existem vários tipos de memória. Há memórias “motoras”, como a sequência de movimentos necessários para engatar uma nova mudança num carro manual. Há as memórias chamadas “declarativas”, em que declaramos qualquer coisa, como por exemplo nas histórias que contamos uns aos outros. Nas memórias declarativas são consideradas memórias com e sem conteúdo emocional. Um exemplo de memória sem conteúdo emocional é saber a data da batalha de Aljubarrota, ou o nome da rua onde mora. Uma memória com contexto emocional são todas aquelas em que sente uma emoção.

Também há memórias de “curta duração” e de “longa duração”. Se lhe disser que o meu número de telefone é o 951238764, e lhe pedir para repetir imediatamente este número, em princípio consegue. Daqui a 1 hora, dúvido.

Tradicionalmente acredita-se que as emoções negativa tem o efeito de melhorar a memória dos acontecimentos centrais, enquanto prejudica a memória para o contexto. Dito de outra forma, emoções negativas tornam as representações mais fortes, mas menos ricas (ver (3)). Isso parece ser particularmente verdade no caso da raiva, mas não tanto do medo. Igualmente verificou-se que emoções positivas aumentam a recoleção de eventos periféricos (4).

Uma memória, para ser criada e estável no tempo, ou de “longa duração”, necessita de síntese proteica. Em 1999 alguém tratou ratos com um inibidor da síntese proteíca imediatamente antes de receberem um choque. Quando testados no dia seguinte para a memória do evento, os ratos comportavam-se como se não se lembrassem de ter recebido o choque. Imediatamente após o choque demonstravam o medo esperado, tanto ao local onde tinham recebido o choque como a um toque que tinha sido associado ao choque. Apenas no dia seguinte tinham um comportamento diferente dos ratos que não tinham sido tratados e que indicava que não se lembravam.

Embora exista relativamente pouco conhecimento relativamente aos mecanismos neuroquímicos da desestabilização da memória, vários processos foram identificados. A nível intracelular parece haver necessidade da degradação de proteínas no proteassoma, atividade de fosfatase, e outras. Na superfície celular há envolvimento dos receptores colinérgicos e dopaminérgicos, pelo menos para a desestabilização de memórias sem medo. Para a desestabilização de memórias com medo os receptores de canabinóides também parecem ser importantes (2).

Quando nos lembramos de uma memória ela torna-se plástica, ou seja, volta a ser ativada, e nesse momento em que está ativa pode ser reescrita.

Esquecimento, Transformação e Transmutação

Eu, agora – que desfecho! Já nem penso mais em ti… Mas será que nunca deixo De lembrar que te esqueci?

Mário Quintana, ‘Do Amoroso Esquecimentoin ‘Espelho Mágico’

No meu local de trabalho foi exibido um filme sobre o Alzheimer “Still Alice“. Neste filme assistimos à luta de um ser humano que desenvolveu para se manter connectado às pessoas significativas da sua vida, mas também para se lembrar de “quem é”.

Muitas vezes, apegamo-nos às memórias que temos, mesmo as dolorosas. De algum modo “quem somos” está interligado com as memórias que temos e temos relutância em transformar essas memórias com receio de deixarmos de ser quem eramos. Mas tem de ser assim?

Se olharmos um pouco para a religião e filosofia oriental vemos que, por lá, o “Eu” é algo que não é o eu que tem as memórias. Mas antes um “Eu” que transcende o corpo e existe para lá dele. De algum modo, quem somos transcende as nossas memórias.

A minha avó desenvolveu Alzheimer. Fui vê-la ao lar onde viveu muitos anos, quando tomar conta dela em casa deixou de ser possível. Ela não se lembrava de mim mas eu lembrava-me dela, para mim isso era suficiente. E nesses tempos, em que ela não fazia ideia de quem eu era, conseguimos estabelecer interações cheias de carinho. Sem palavras, sem considerações, sem história pessoal, sem barreiras. De mãos dadas e dois sorrisos, um de cada lado. É das melhores memórias que tenho da minha avó.

Porque é que importa?

Quando as memórias são reativadas podem ser modificadas. E podem ser modificadas para serem mais úteis. Os alquimistas tentaram transmutar chumbo em ouro. As memórias também podem ser transmutadas. De chumbo para ouro.

Um exemplo magnifíco e tristonho da realidade convertida em fantasia utilizada para alienar todo um povo pode ser visto no filme “Fantasia Lusitana” do realizador João Canijo. A realidade e a fantasia podem, e talvez devam, ser entendidas não como entidades discretas e bem separadas mas como um contínuo em que uma se esbate progressivamente na outra. O que importa, então, são menos a realidade das memórias e as memórias da realidade, mas antes onde é que essas memórias reais realmente nos conduzem.

A possibilidade terapêutica desta descoberta é a deixarmos de ser reféns do passado. O que condiciona a nossa vida não são os eventos, que nos aconteceram, que já passaram, que já vivemos, mas antes as memórias que guardámos desses eventos. Essas memórias são o legado desse evento – que trazemos connosco todos os dias.

Lembro-me de dar de mamar aos meus filhos. Lembro-me de olhar para a nuca do rapaz, agarrado de um modo que me levava invariávelmente para um lugar cheio de gargalhadas sonoras. A menina era muito diferente. Com uma nuca de cabelo muito negro, recordava-me um pouco uns cachorros minúsculos que vi uma vez algures, cada um mamando delicadamente. Apenas guardei, algures em mim, estas memórias de hilariedade gargalhante e contentamento terno. Acompanham-me e fazem-me sorrir quando me lembro delas. São memórias que, sejam verdadeiras ou falsas, me fazem bem.

"Eu corro atrás da memória
De certas coisas passadas
Como de um conto de fadas,
De uma velha, velha história…

Tão longe do que hoje sou
Que nem sei se quem recorda
Foi aquele que as passou,
Ou se apenas as sonhou
E agora, súbito, acorda."

Francisco Bugalho, in "Canções de Entre Céu e Terra"

Artigos:

(1) “Memory Consolidation for Contextual and Auditory Fear Conditioning Is Dependent on Protein Synthesis, PKA, and MAP Kinase”. Glenn E. Schafe, Nicole V. Nadel, Gregory M. Sullivan, Alexander Harris, and Joseph E. LeDoux (1999).

(2) “An update on memory reconsolidation updating”. Jonathan L. C. Lee, Karim Nader, and Daniela Schiller (2017).

(3) “Memory and Forgetting”. Chris R. Brewin (2018).

(4) “Positive emotions enhance recall of peripheral details”. Jennifer M. Talarico, Dorthe Berntsen, and David C. Rubin. Cogn Emot. 2009 Feb; 23(2): 380–398. doi: 10.1080/02699930801993999

Livro:

“Myths to live by.” Joseph Campbell (1972)

Publicado por Ofélia Carvalho

Trainer de PNL e Doutorada em Ciências Biomédicas. Investigadora na área das neurociências e biologia molecular com mais de 20 anos de experiência. Consultora do "Panorama Social". Formada em "Time Line therapy", "Human Validation Model" de Virginia Satir, Comunicação generativa e Coaching sistémico.

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